A NORMALIZAÇÃO DA SOCIEDADE E A CONSTITUIÇÃO DA PSICOLOGIA NO BRASIL NO SÉCULO XIX


A NORMALIZAÇÃO DA SOCIEDADE E A CONSTITUIÇÃO DA PSICOLOGIA NO BRASIL NO SÉCULO XIX

Rodrigo Gondim Ferreira,
Universidade Federal de Goiás


RESUMO: Este trabalho constitui-se numa possibilidade de compreensão da formação da Psicologia enquanto campo de saber e enquanto instrumento de intervenção social. Deste modo, o presente trabalho tem como fundamento analisar todo o discurso histórico que envolveu a formação da psicologia no Brasil, desde o período colonial até fins do século XIX. Para tal objetivo, será analisado o papel da normalização da sociedade desde o momento das missões católicas de conversão dos infiéis até os processos institucionais instados pelo Estado Monárquico após a chegada da Coroa Portuguesa no Brasil (1808).
PALAVRAS-CHAVE: Norma. Discurso. Psicologia.

O DISCURSO HISTÓRICO: OS ANTECEDENTES PARA A FORMAÇÃO DA PSICOLOGIA NO BRASIL

Quando se trata de analisar a história do Brasil, passa-se a compreender como se constituiu as diversas instituições que marcam a contemporaneidade brasileira. O primeiro momento dessa análise volta-se para o período colonial, quando os portugueses cruzaram o Atlântico e desembarcaram em novas terras o que, por si só, se tornou um grande feito para a era moderna:
A descoberta da Améria talvez tenha sido o feito mais espantoso da história dos homens: abria as portas de um novo tempo, diferente de todos os outros – a nenhum semelhante, dizia Las Casas –, somava às já conhecidas África e Ásia uma nova porção do globo, conferia aos homens a totalidade de que eram parte. (SOUZA, 1986, p. 21)
Em meados do século XV e ao longo do século XVI, os europeus estavam empenhados na expansão marítima. Esta expansão tinha como fundamento econômico o Mercantilismo, isto é, a Europa vivia um momento em que a riqueza era medida pela quantidade de metais preciosos que cada monarquia possuía; e, um outro fundamento que levou a tal expansão foi o imaginário religioso da época, no qual era preponderante a expansão da religião católica e a conversão dos infiéis ao cristianismo.

A descoberta do Brasil entrelaça-se na ultramarina expansão comercial portuguesa. Episódio, bem verdade, perturbador e original, incapaz de se articular totalmente nas navegações africanas e asiáticas. Diante do português emergiu não apenas um mundo novo, mas também um mundo diferente, que deveria, além da descoberta, suscitar a invenção de modelos de pensamento e de ação. O primeiro golpe de vista, embaraçado com a realidade exótica, irredutível aos esquemas tradicionais, apenas revelou a esperança de novos caminhos dentro do pisado quadro mercantilista. O descobridor, antes de ver a terra, antes de estudar as gentes, antes de sentir a presença da religião, queria saber de ouro e prata. (FAORO, 2001, p. 116)


Com a chegada dos portugueses em terras do outro lado do Atlântico e os primeiros contatos com os grupos indígenas, as duas premissas da expansão ultramarina portuguesa estavam à sua disposição: terras e riquezas para explorarem e a expansão da fé católica junto aos índios. Aliás, o primeiro grande esforço da empresa de colonização portuguesa foi o de cristianizar: a catequização dos índios se tornou prioridade para os portugueses que não possuiam, num primeiro momento, os instrumentos necessários para iniciar a exploração econômica da nova colônia.
Ao longo do período colonial os portugueses mantiveram-se firmes quanto aos seus dois propósitos: explorar comercialmente a sua colônia e garantir a expansão e consolidação da religião católica entre os povos indígenas. Esses duas ações vão ao encontro do papel que a coroa portuguesa delineará em relação à saúde da população e à psicologia.

O IMAGINÁRIO RELIGIOSO ENQUANTO NORMA PSICOLÓGICA NO BRASIL COLONIAL E A SAÚDE PÚBLICA COMO NORMA LEGAL  

Durante o período colonial, a cristandade católica por meio dos portugueses, travou a uma verdadeira batalha para expansão do cristianismo. O imaginário que cercava esse intuito era o de expulsar o demônio das terras coloniais portuguesas. O primeiro conflito para se impor a presença de Deus sobre o demônio, que dominava a colônia, foi o nome dado para a mesma: inicialmente Terra de Santa Cruz – cuja designação levava em conta a madeira de cor avermelhada encontrada na costa, conhecida como pau-brasil – e, posteriormente, Brasil. Souza (1986, p. 28/29), destaca a contrariedade do frei Vicente do Salvador sobre a troca do nome, exemplificando esse traço imaginário que cercava a colonização portuguesa:

O primeiro movimento – o de Pedro Álvares – se fez no sentido do Céu: a este acoplar-se-ia a colônia, não fossem os esforços bem sucedidos de Lúcifer, pondo tudo a perder. O texto de nosso primeiro historiador é extraordinário justamente por dar conta da complexidade subjacente às duas possibilidades: enxergar-se a colônia como domínio de Deus – como Paraíso – ou do Diabo – como Inferno. Para frei Vicente, o demônio levou a melhor: Brasil foi o nome que vingou, e o frade lamenta que se tenha esquecido a outra designição, muitoa mais virtuosa e conforme aos propósitos salvacionistas da brava gente lusa.
Esse imaginário que compõem a paisagem histórica do período colonial, o embate contra as forças demoníacas revelam um traço de proto-psicológico, pois ao tratar desses males, os religiosos católicos pacificariam a condição mental dos habitantes da colônia contra os medos que tais forças provocavam nas pessoas. Mas, quem eram os “psicológos” no Brasil colonial?  Quem encarregava-se de curar os males que pertubavam a mente das pessas eram os missionários jesuítas da Igreja Católica. Eram eles os principais responsáveis por catequizar os índios, por meio das missões, no qual os religioso católicos se adentravam às aldeias indígenas e ali criavam missões com o intuito de garantir a conversão dos infiéis à religião católica. E os jesuítas tiveram um papel preponderante nessa fase missionária, principalmente em relação ao discurso teórico que determinava as suas ações perante o propósito de conversão dos indígenas e o estabelecimento do catolicismo na colônia. Neste sentido, a literatura jesuítca postulava-se como uma das principais fontes de um conhecimento psicológico em que o encontro de si mesmo seria um dos fatores preponderantes para a conversão ao cristianismo. Essa e outras ideias fomentaram o trabalho missionário, tal e qual destaca Massimi e Guedes (2004, p. 38):

Fica claro então o motivo por que, na perspectiva de Vieira, conhecimento de si e conversão coincidam: conhecer a si mesmo significa viver em conformidade com o próprio ser, esta conformidade sendo possível pela participação do Ser criador, o Ser de Deus.
O conhecimento de si, também, seria um instrumento de suma importância num lugar onde Deus ainda não predominava e a presença do demônio incitava o medo no imaginário dos cristãos portugueses e os convertidos. Esse imaginário suscitou outras literaturas psicologizantes por parte dos teólogos da Igreja, pois com o mau sempre à espreita, era necessário reforçar o poder da fé em Cristo e na Igreja Católica. Enfim, uma norma religiosa que regia a cura da alma em nome da expansão da Igreja Católica e da subordinação dos povos indígenas ao rei português.
O aspecto central dessa ordem imaginária no qual o discurso da conversão dos inféis ao cristianimso, as ameaças que deveriam ser extirpadas e a necessidade de a missão católica instaurar um paraíso edênico, estava de acordo com os objetivos da colonização portuguesa, haja vista que numa terra onde a população autóctone não era submissa a Deus, como poderia ser submissa a um rei que estava a reinar a colônia do outro lado do Atlântico? Para Antunes (2005, p. 21), como o Brasil era uma colônia de exploração, no qual estava submetida aos interesses econômicos de Portugal, exigiu-se uma organização que consubistanciasse tais interesses:

Essa situação exigiu a organização de um forte aparelho repressivo de um lado e, de outro, um sólido aparato ideológico, sustentado principalmente pela Igreja Católica, cuja função precípua era transmitir e manter uma ideologia que, em última instância, legitimasse a exploração da colônia.
Por sua vez, com o avanço da colonização e a exploração das riquezas e tendo o apoio da Igreja Católica no processo de cristianização, a Coroa Portuguesa criou uma estrutura administrativa centralizada – que inclusive buscou legalizar a questão da saúde pública. Contudo, a preocupação com a saúde da população colonial somente veio à tona, como política de ação da Coroa Portuguesa, a partir do momento em que a colônia se tornou economicamente interessante aos cofres do reino. Tanto a medicina quanto à saúde da população estavam ligadas a um regime jurídico e institucional instado pela metrópole. Conforme Machado (1978, p. 24), afirma que:

Qualquer um dos casos é testemunho de uma situação geral em que a figura do médico está ligada a um cargo que ocupa como pertecente à administração colonial, de quem recebe salário e obrigações específicas. O que faz com que durante toda essa época o médico desempenhe todo um papel de funcionário servindo por alguns anos no Brasil (...)
Em relação às questões relacionadas aos cuidados necessários à saúde da população evidencia-se a mesma situação: a saúde pública na colônia é uma mera norma regida por leis, sem a uma concepção de saúde preventiva e que atendesse aos interesses da população. O cárater essencial da proposta de atenção à saúde da população colonial é punitiva: se não cumprisse a lei, haveria uma punição, isto é, uma determinada família que não mantivesse a higiene da porta da sua casa conforme aquilo que estava regulamentado, seria punida.

Tudo isso mostra não só os limites da intervenção da Câmara e da administração colonial, como também o significado específico de suas atribuições que não diz respeito a uma política de saúde capaz de organizar, a partir de uma reflexão e de medidas de tipo positivo, o funcionamento da cidade. A saúde da população está na dependência da presença de obstáculos; quando aparecem e são sentidos pelos habitantes como algo nefasto, a ser proscrito e portanto denunciado, são afrontados pela Câmara de modo local, disperso e sem continuidade. A presença de um perigo dita medidas de defesa que não implicam a ideia de periculosidade e o projeto de prevensão. Daí o cárater punitivo da ação da Câmara. (MACHADO, 1978, p. 51)     
Desta forma, as questões que envolviam a saúde da população eram resolvidadas por leis: fossem elas escritas ou espirituais. Entretanto, no que tange à saúde num contexto geral, ainda eram incipientes as ações da metrópole portuguesa em prol de combater os problemas causados pelas inúmeras doenças que assolavam a população. Não havia cursos de medicina na colônia; e; poucos médicos se arriscavam sair de Portugal e vir atuar num território ainda pouco explorado e com recursos aquém das necessidades da população. Assim, a salvação estava nos recursos que dispunham os membros da Igreja Católica: as rezas, as conversões, os batismos, as remissões dos pecados e entre tantos outros instrumentos que possuíam uma literatura que se baseava numa psicologia que tinha a religião como se principal fundamento.
Porém, com o aumento da importância econômica do Brasil para a Coroa Portuguesa, há uma mudança decisiva que irá determinar os rumos da saúde pública, em especial no que concerne à formação dos saberes médicos. Portugal passa a dar maior atenção aos cuidados médicos em relação à população colonial, pois um povo assolado por pestes e doenças não conseguiria trabalhar em prol da exploração dos recursos que a colônia dispunha para enviar para a metrópole.
Apesar dessa mudança, ainda eram limitados a ação de Portugal com o intuito de previnir as doenças, o que somente veio a ocorrer a partir do século XIX. Mas, o que definiu essa mudança? Quais foram os aspectos definidores para a construção de um saber médico atrelado à saúde?

O DISCURSO NORMALIZADOR: A MEDICINA SOCIAL A SERVIÇO DO ESTADO

Como vimos anteriormente, o discurso médico apreendido ao longo do período colonial tinha como fundamento a doença, ou seja, atacava-se o problema sem pensar na prevenção do mesmo. A partir do século XIX, o discurso médico passa a ter o foco da prevenção e, para isso, eram necessárias algumas medidas capazes de lidar com a saúde da população.

O século XIX assinala para o Brasil o início de um processo de transformação política e econômica que atinge igualmente o âmbito da medicina, inaugurando duas de suas características, que não só tem vigorado até o presente, como têm-se intensificado cada vez mais: a penetração da medicina na sociedade, que incorpora o meio urbano como alvo de reflexão e da prática médicas, e a situação da medicina como apoio científico indispensável ao exercício de poder do Estado.
A transformação do objeto da medicina significa fundamentalmente um deslocamento da doença para a saúde. (MACHADO, 1978, p. 155)

A inversão da lógica desse discurso teve como pano de fundo dois marcos históricos decisivos: a fuga da Coroa Portuguesa para o Brasil, em 1808, e a sua Independência, em 1822. Isso determina uma mudança de valores e hábitos, pois, a população colonial acostumada com poucos recursos estruturais e culturais, com a instalação da Coroa, vê-se às voltas com mudanças importantes: estradas são construídas, o espaço urbano é totalmente modificado para receber a corte e os estrangeiros que a acompanharam, a educação também acompanhou essas mudanças com a criação, por exemplo, dos primeiros institutos de educação superior, a influência cultural européia, principalmente, francesa. Tudo isso, vai inserindo-se de modo decisivo no seio da sociedade que se organizava às pressas para atender as demandas da Corte.

A vinda da Corte, se tem por onde afagar a vaiade brasileira, põe a descoberto, de outro lado, com imenso séquito de funcionários, fâmulos e parasitas que a acompanham, a debilidade deum domínio que a simples distância aureolara, na colônia, de formidável prestígio. Além disso, a presença, agora, e naturalmente o convívio e trato forçado, de numerosos estrangeiros, nos ramos mais diversos de ocupação, há de ajudar os naturais, mesmo quando procedam das classes ínfimas, a julgar os seus dominadores com melhor senso da realidade. (HOLLANDA, 1997, p. 11)

O espaço urbano passa a ser o território de embate entre uma cultura colonizada e uma cultura colonizadora – europeizante. Neste sentido, são implementadas as técnicas de normalização dessa sociedade que necessitava se higienizar – higienização esta que passava pela desconfiguração completa da sociedade colonial. Com o esse intuito, a medicina será o espaço de saber privilegiado no qual o discurso da normalização da sociedade encontrará um grande aliado.

As técnicas de normalização – que instituem e impõem exigências da ordem social como critério de normalidade, considerando anormal toda a realidade hostil ou diferente – aonde foram refletidas e aplicadas pela primeira vez no Brasil senão na medicina do século XIX que se alto definiu como uma medicina política? (MACHADO, 1978, p. 156)

A medicina incorporou o espaço urbano como instrumento de trabalho e estudo: conhecer a cidade e intervir sobre ela para que pestes e doenças não ocorressem – daí o caráter preventivo da saúde. Nesse novo discurso, no qual a medicalização da sociedade se tornou uma ação de Estado, o projeto da medicina passa a ser o de transformação do desviante num ser normalizado. Para isso, foi necessário normalizar a medicina com a criação de faculdades[1] e criando a figura do charlatão médico que seria reprimido pelo Estado. Ao contrário do que ocorreu no período colonial, no qual a cura estava a cargo dos religiosos católicos e o demônio era o contraponto a ser combatido com o objetivo de fortalecer a presença da Igreja Católica, a partir do século XIX, a medicina era a responsável pela saúde da população e os contrapontos para fazer da medicina uma instituição de saber e normalizador da sociedade eram os cursos de medicina e o chalatão médico.

A medicina social, com o seu novo tipo de racionalidade, é parte integrante de um novo tipo de Estado. Novos termos, novos tipos de relação. Quando o Estado se propõe a assumir a organização positiva dos habitantes produzindo as suas condições de vida, quando estabelece a possibilidade de um controle político individual ou coletivo que se exerça de forma contínua, a medicina nele está presente como condição de possibidade de uma normalização da sociedade no que diz respeito à saúde, que não é uma questão isolada, um aspecto restrito, mas implica em uma consideração global do social. (MACHADO, 1978, p. 157/158)
Neste quadro no qual a medicina se tornou um instrumento a priori de normalização da sociedade, como ficava a medicina do comportamento? Quais eram os espaços de atuação desta medicina? De que modo a norma influenciou na institucionalização do ramo de saber denominado Psicologia?
Analisando, num primeiro momento, o desenvolvimento da medicina rumo à incorporação da loucura como problema de saúde pública a ser, inclusive, previnido, medicado e normalizado, Foucault nos traz uma pista:

A medicina viu esfumar-se progressivamente a linha de separação entre os fatos patológicos e os normais: ou melhor ela apreendeu mais claramente queos quadros clínicos não eram uma coleção de fatos anormais, de "monstros" fisiológicos, mas sim constituídos em parte pelos mecanismos normais e as reações adaptativas de um organismo funcionando segundo sua norma (...) (FOUCAULT, 1975, p. 12)
O papel normalizador que a medicina se coloca também influenciará no desenvolvimento de uma ciência psicológica que necessitava tratar a loucura – pois a loucura trata-se de uma anormalidade da sociedade e os seus deviantes deveriam passar pelo processo normalizador que determinava o Estado por meio da medicina. Neste aspecto da anormalidade, território e corpo são superpostos, num ato em que a territorialidade normalizadora será o foco de atuação do profissional médico.

A coincidência exata com o corpo da doença com o corpo do homem doente é um dado histórico e transitório. Seu encontro só é evidente para nós, ou melhor, dele começamos apenas a nos separar. O espaço de configuração da doença e o espaço de localização do mal no corpo só foram superpostos, na experiência médica, durante curto período: o que coincide com a medicina do século XIX e os privilégios concedidos à anotomia patológica. (FOUCAULT, 1977, p. 1/2)     
Destarte esse encontro, cabia a um novo instrumento isolar o indivíduo anormal do restante da sociedade. O corpo da doença e o corpo do homem deveriam ser isolados, num local no qual a loucura estaria trancafiada, distante da normalização da sociedade empreendida pela medicina, em comum acordo com o poder constituinte: a monarquia. Assim sendo, uma nova ramificação da medicina social surge como forma de tratar o corpo da doença: a psiquiatria; e, paralelamente, surge o espaço que irá isolar o corpo do homem: o hospício.

Em 1841, D. Pedro II determina a criação, no Rio de Janeiro, de um hospício destinado no tratamento de alienados. Primeiro hospital de doentes mentais do Brasil, inaugura uma nova fase da problemática da loucura e do louco em nosso país: assinala, como marco institucional, o nascimento da psiquiatria. (MACHADO, 1978, p. 375)
A partir deste marco histórico, Machado (1978, p. 376) destaca que surge o projeto – característico da psiquiatria – de patologizar o comportamento do louco, só a partir de então considerado anormal e, portanto, medicalizável.
O campo do saber psicológico estava em pleno curso de desenvolvimento a partir da segunda metade do século XIX. O projeto de normalização da sociedade realizado pelo Estado contribuiu de forma decisiva para a constituição dos saberes médicos. Por seu turno, foi decisiva a constituição da psiquiatria e dos hospícios para a constituição e consolidação de um saber psicológico no Brasil de fins do século XIX; e, principalmente, em relação aos hospícios, os mesmos serão os espaços dentro do território – o espaço urbano – que trouxe à tona o conhecimento necessário para o desenvolvimento desse saber psicológico.

No artigo Abus do Dictionnaire de Médecine, Vicq d’ Azyr confere à organização de um ensino no meio hospitalar valor de solução universal para os problemas da formação médica (...) Em pouco tempo, porém, essa reforma da pedagogia vai tomar um significado infinitamente mais amplo; reconher-se-á nela a faculdade de reorganizar todo o conhecimento médico e de instaurar, no saber da doença, formas de experiência desconhecidas ou esquecidas, porém mais fundamentais e decisivas (...) Modo de ensinar e dizer, que se tornou maneira de aprender e de ver. (FOUCAULT, 1977, p. 71)  

CONCLUSÃO

Após esse conjunto de análises, depreende-se que a psicologia estava inserida – enquanto instrumento de conhecimento do indivíduo – nas relações sociais tanto do período colonial quanto após a Independência do Brasil (1822). Nestes diferentes períodos da história brasileira, a psicologia desempenhou alguns papéis: conhecimento de si mesmo para se chegar a Deus, como corroborado no período colonial; como instrumento normalizador dos anormais, com o advento da psiquiatria; e, por fim, enquanto ciência do conhecimento mental do ser humano. Em todas essas fases, um aspecto inerente ao processo de constituição de um saber psicológico esteve presente: a norma, seja ela do ponto de vista religioso – como no caso da ação dos jesuítas e a literatura por eles evocadas com o intuito de conversão dos infiéis –, legal – quando a metrópole institui por meio de leis as relações da população com a higiene pública – ou enquanto política de Estado – a partir da chegada da Coroa Portuguesa, normalizar a sociedade passava pelo crivo da Monarquia.
Deste modo, a constituição da psicologia passou pela formação de um discurso aliado aos interesses dos grupos dominantes. O discurso psicológico foi, e ainda o é, uma ferramenta normalizadora da sociedade. Aos desviantes da conduta estabelecida por um determinado grupo social, cabe à psicologia normalizá-los.
Todavia, não se esqotam as análises referentes à constituição da psicologia e os processos normalizadores que fazem desta uma ciência médica. Cabe, ainda, uma análise mais profunda sobre a forma como o processo normalizador foi engendrado e, em especial, a resistência social e terapêutica a um saber médico até então desconhecido com o advento da criação do primeiro hospício durante o período imperal no Brasil. Há que se, também, analisar as influências externas que foram incorporadas no processo de constituição da psicologia no Brasil, em especial, os processos normalizadores em voga, durante o século XIX, na Europa, pois este continente foi a principal influência que determinou a formação cultural do Estado monárquico em nosso país.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANTUNES, Mitsuko Aparecida Makino Antunes. A psicologia no Brasil: uma leitura histórica sobre sua constituição. São Paulo: EDUC; UNIMARCO Editora, 2005.
FAORO, Raimundo. Os donos do poder: a formação do patronato político brasileiro. Rio de Janeiro: Editora Globo, 2001.
FOUCAULT, Michel. Doença mental e psicologia. Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro LTDA, 1975.
__________, Michel. O nascimento da clínica. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1977.
HOLLANDA, Sérgio Buarque de (org). A época colonial: do descobrimento à expansão territorial. Tomo I. Volume I. São Paulo/Rio de Janeiro: Difel, 1976.
__________, Sérgio Buarque de (org). O Brasil monárquico: o processo de emancipação. Tomo II. Volume I. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997.
MACHADO, Roberto (org). Danação da norma: medicina social e constituição da psiquiatria no Brasil. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1978.
MASSIMI, Maria; GUEDES, Maria do Carmo (orgs). História da Psicologia no Brasil: novos estudos. São Paulo: EDUC; Cortez, 2004.
SOUZA, Laura de Mello e Souza. O diabo e a Terra de Santa Cruz. São Paulo: Companhia das Letras, 1986.


[1] Machado, Roberto. No ano de 1832 foram criadas as Faculdades de Medicina do Rio de Janeiro e da Bahia. 1978, Pág. 176.

Comentários